Meras Imagens...

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Karen Facchinetti

terça-feira, 17 de maio de 2011

Cada alma enterra seus mortos


Curioso como a vida pode se revelar através de uma fresta. De um súbito olhar por entre as grades de uma janela. Talvez surpreenda dessa forma a quem disponibiliza sua sensibilidade, a quem todos os dias compartilhe de uma veemência na vida pela consciência avassaladora da sua ausência. Ausência de vida...

Comigo pelo menos é assim. Parece que o mundo se revela na observação das coisas fugidias, na melancolia, nas gotas de chuva de um dia de frio que corta os lábios e o faz sangrar de leve. No vento que arrebenta as certezas, no cinza que de triste se fortalece e se reconhece como contente. Definitivamente, a vida não é apenas um dia de sol, e isso também me conforta. A consciência de que a monocromia faz parte dos nossos dias, e que o vazio das cores faltantes é o impulso dilacerante para a gana que se deve ter.

Somente o sofrimento humaniza as pessoas... E essa frase não é minha. Somente no frio dos pensamentos conseguimos prestar nossas contas e amarmos sem adulações. Sem paixões, sem guerras, sem a falsa idéia do poder.

O som da voz da minha amiga foi ficando longe, bem longe... Se afastando rapidamente. Eu olhava por entre as grades, e pensava naquele cemitério, um constante cartaz, pulsante e que vibrava a sua mensagem todos os dias.

Ao contrário do terror e do pânico que nos acomete, aquele lugar fazia-se calmo, solene. Árvores, flores, um grande campo enfeitado por vasos. Cada vaso representando sua perda.

E as árvores balançavam com o vento e faziam cor no meio do cinza e do frio que envolviam toda aquela imagem. Enxergar a morte daquela distância e altura acentuava ainda mais uma visão poética e contrastada que meus olhos moles e estáticos persistem em ter.

Mas o que realmente me chamou atenção, não foi o fato de ali haver um cemitério. Isso eu já estava acostumada, já sabia. Tudo parou um instante quando debaixo da garoa cortante uma família compartilhava de um mesmo guarda – chuva. Parados, olhares baixos, abraçados pelo frio, pela chuva, pela dor. Não havia mais ninguém ali, somente aquela família e o vazio gritante na corrente dos braços entrelaçados.

Podia sentir que por mais firmes, por mais sólidos e unidos, nada era capaz de confortar a dor individual.

Um deles, um adolescente, afastou-se do grupo e ficou á mercê dos pingos enérgicos que batiam em seu corpo. Olhando aquele cenário como quem não olha nada, girando e se mexendo bestamente.

Logo em seguida, um homem abaixou-se diante das flores e com as mãos segurava a cabeça para não perdê-la de vez. Chorava. Um choro que sem som escutei. Pude escutar também a batida dos joelhos no concreto. Pude ouvir as lágrimas gritando a saudade. E ali de pé, uma senhora e uma menina. Intactas, sofridas, alisando carinhosamente os cabelos do homem. Quem aliviaria as suas dores?

Consegui me desprender daquela cena hipnotizante. Fiquei uns bons minutos ali, embaixo daquele guarda-chuva sem querer sair, sem saber se deveria, se tinha o direito.

Minha máquina estava na mochila, pertinho dos meus pés. Em momento algum pensei em fazer uma foto. Daria uma boa foto.

Voltei e a voz da minha amiga clareou. Voltamos ao que estávamos fazendo. Vimos algumas fotos no computador. Procurei não pensar.

Mais tarde, vindo para casa, sentada no trem, onde o bafo gelado embaçava os vidros e inspirava a minha filosofia, pensei em tudo o que tinha visto pela janela, entre as grades.

Em como a morte está presente, viva e pulsante em nossas vidas. E que todos dias enterramos os nossos mortos.

Sim, estamos constantemente enterrando decepções, sentimentos, pessoas as quais nos magoaram. Enterramos fases, períodos, gostos, desafetos. Muitas vezes somos obrigados a enterra-los. Enterramos até a nós mesmos quando não suportamos os nossos fardos.

Enterramos tudo isso numa caixa só nossa. Uma caixa impenetrável, inviolável. Que nunca desparecerá...

Por mais dolorosa que sejam as nossas perdas, por mais fundo tenhamos que cavar nossas mágoas, é justo que continuemos. Pois um dia fecha-se a tampa, esgota-se a cota de felicidade e sofrimento nessa nossa jornada.

E tudo o que vivemos aqui é memória.

É bom olhar pelas janelas frias e saber que apesar de tudo existe movimento...